‘Belvedere’ é uma edição da obra completa de Chacal, produzida entre 1971 e 2007 que, portanto, traz não apenas os poemas de seus primeiros livros, mas também as produções mais recentes, que demonstram um claro amadurecimento do autor. Entre os doze livros contidos em ‘Belvedere’ está o pequeno ‘Muito prazer, Ricardo’, com o qual o poeta inaugurou sua poesia aos vinte anos de idade. Chacal foi um dos pioneiros da chamada geração mimeógrafo, que tirou a poesia das estantes das livrarias para ‘cair no mundo’. Na década de 1970, com o grupo Nuvem Cigana, realizou, pela primeira vez no Brasil, a poesia moderna falada. Acompanha o volume uma edição fac-símile do livro ‘Quampérios’, editado originalmente em 1977 e considerado pelos críticos uma das melhores obras do autor.
Letra de Música é Poesia?
publicado no: http://www.cronopios.com.br/site/default.asp
Por Tavinho Paes
O amor é um grande laço
um passo para uma armadilha
um lobo correndo em círculos
para alimentar a matilha
comparo a sua chegada
com a fuga de uma ilha:
tanto engorda quanto mata
feito desgosto de filha
Djavan
Essa controversa conversa é antiga e tem um mofo tão espesso e viscoso em sua superfície que fica difícil tentar investigar sua carne. Digamos que esta seja uma questão em que a Academia (e suas áreas de interesse restritos) colocou em cena por pura idiossincrasia; se perdoarmos a cretinice que nela sossobra.
A Poesia Parnasiana do início do século passado, que podemos considerar uma das mais acadêmicas de que se tem conhecimento, embora inclua em suas análises teleológicas as palavras cultas e as rimas ditas ricas como índices de pureza formal, sempre teve por interface operacional uma métrica rígida e fonossilábica, que concedia qualidades rítmicas indiscutíveis ao poema relatado.
No caso da Poesia Cantada, a mesma métrica é imposta pelas particularidades do metrônomo musical e afetada pelos apelos harmônicos das melodias. Tornar apócrifos e dignos de restrições, poemas que chegam às mídias radiodifundidas embaladas por canções é um contrasenso pernicioso que contraria a própria essência da Poesia, incluindo entre seus discutíveis prolegômenos um preconceito tão nocivo quanto o racismo.
Seria simpático dizer que nas canções do Chico ou do Vinícius o que está sendo cantado não seriam poemas? Seria lógico afirmar que Cartola não escreveu poemas, mesmo percebendo que em as rosas não falam… os versos do samba-canção poderiam ter sido escritos até por Baudelaire? Seria justo interditar o rótulo de poema ao fizeram compositores como Cazuza, Noel, Caetano, Melodia, Lamartine…? Muito pessoalmente, acho que o Braguinha, como poeta, poderia ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras sem demagogias e sem precisar que um dos imortais viesse a falecer.
Veja só um fato real: em 2003, no evento poemaShow, Luana Carvalho, filha da sambista Beth Carvalho, apresentou-se no palco. Com 17 anos, não escrevia Poesia, mas começou lá sua récita com um poema longo, muito bem estruturado e capaz de produzir um efeito desconcertante na audiência. Seguiram-se outros dois: ambos de alto impacto. No terceiro, desconfiou-se que ela estava recitando letras de sambas, pois os versos de Nélson Cavaquinho repercutiram no repertório mnemônico da platéia, arrepiando pelos do braço de muita gente. Os anteriores tinham sido pérolas desconhecidas, coletadas na discoteca da mãe, assinados por Luís Carlos da Vila e Candeia.
Sem pretensão alguma, ela inaugurou um fato que passou a ser notado nos saraus: deu à chamada Letra de Música, qualidades típicas de nobres poemas, recitando os versos daqueles sambas com outra respiração, outro ritmo e outra harmonia. Quando se pergunta se uma letra musical é Poesia, o melhor é responder com outra pergunta: Sheakspeare fazia ou não poesia quando escrevia suas peças teatrais?
Mesmo com este argumento, a questão não se encerra.
O Direito Autoral vigente, um sub-produto do direito industrial que protege eternamente patentes e torna pública a obra dos literatos falecidos, ao editar uma música, classifica seu conteúdo total como uma obra lítero-musical, indissociando os versos da partitura, duas linguagens completamente diferentes.
Há quem manipule ambas com a mesma maestria, mas, mesmo assim, o que é dito tem uma língua de origem; enquanto a linguagem da música é universal.
Há casos em que a música adapta aos seus compassos poemas que foram previamente publicados em livros. Eu mesmo tenho boa parte da minha obra musical realizada a partir de poemas publicados marginalmente, entre 70/80. Aliás, como não eram livros industriais, contra-assinados por uma editora, nem livros de poesia eram…
Não seria inconsistente tratar o poema decalcado como uma virgem que perde a castidade da pura Poesia quando passa a ser cantarolado? O que acontece é similar ao que sucede a alguém que muda o nome de solteiro quando casa: continua sendo a mesma pessoa, mas, diante do Direito Cível, assume uma nova identificação.
Se um poema pode ser musicado, como no caso de Fagner com Cecília Meireles, porque uma Letra de Música não pode vir a se tornar um poema?
Na Lógica do Sentido, utilizando o modelo matemático de Lewis Caroll, Deleuze discute profundamente as relações da linguagem, enquanto oral e escrita. O que é manifesto pela fala e o que é entendido quando lido produz diferenças na ordenação dos sentidos. No caso da Poesia, a liberdade destes sentidos é tamanha que estas diferenças se multiplicam a ponto de você não poder determinar com precisão onde o diferencial começa e onde as identidades expressas podem convergir.
As melopéias poundianas, entre outros conceitos fundamentais discutidos por ele em seus inúmeros ensaios sobre o abecê da Poesia, funcionam como bons argumentos de reforço para eliminar as barreiras que tentam isolar a Poesia da Letra de Música.
Já é ventilada a idéia de que os poemas falados (Poesia Falada) nos atuais saraus e encontros poéticos estejam virando um novo tipo de Poesia; ou seja, uma nova categoria está sendo criada para dar conta dos problemas estéticos da mutação do paradigma.
Alguns poetas experimentam oralizar seus versos com a conivência de efeitos sonoros, jogos de iluminação ou movimentação corporal. Os podcasts deste site são uma veemente prova de que a experimentação neste sentido é muito interessante. O rap da periferia não foge da raia e, com sua voz perigosa, vinda das das profundezas das contradições sociais, (talvez) seja uma poesia que se supera no ritmo cada vez que é ritmada.
Queiram ou não queiram, esses poemas falantes estão umbilicalmente ligados aos processos musicais das vanguardas do século XX, coisa que só aconteceu porque um movimento poético criou as indagações nacessárias ao salto sobre a fronteira. As apresentações de poetas e intérpretes de poesia que podem ser vistos e ouvidos nos tempos atuais manipulam positivamente a idéia da Poesia, como vislumba o poema…
todo poeta mudo morre
aquele seu poema
é uma coisa escrita
outra: falada
ou a sua poesia fala
ou falada não diz nada
bem escrita é lida e linda
como se fosse uma mandala
só que quando a poesia fala
o que nela é dito: entala
é a voz do poema que fala calada
a cada palavra
ou o poeta fala o poema
e o nó no gogó desata
ou o poema gagueja
do goto ao cangote
e gago na glote lhe mata
No meu humilde e obstinado posicionamento, a chamada Letra de Música é um tipo manifesto de Poesia, como aconteceu com a Poesia Concreta, a Poesia Processo e outras invenções nas quais o suspiro da Poesia respirava sadio e sensível no conteúdo factível por trás da forma.
Acredito piamente que os poemas conhecem a poesia de seus poetas tão bem quanto os poetas conhecem a poesia de seus poemas. Já a Poesia, que no ato do poema os surpreende, antes e depois, independe totalmente do conhecimento dos dois.
Tavinho Paes (52) é poeta. Tem mais de 200 registros musicais , como Totalmente Demais (Caetano Veloso) e Rádio Blá (Lobão). Possui mais de 100 títulos lançados como panfletos marginais desde 1975 e, só recentemente publicou um livro industrial, OS MOMOSSEXUAIS . Edita o jornal poemaShow e a webPage www.poemashow.com.br . Produz com Bruno Cattoni o Festival Poesia Voa e os eventos poemaShow, com Ricardo Ruiz; e cinePoema com Marcelo Gibson . E-mail: tavinhopaes@gmail.com
Os Três Mal-Amados
fala de Joaquim
(trechos)
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões da visita. O amor veio e comeu todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.
(…)
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida dos meus ternos, o número dos meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
(…)
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X.
Comeu meus testes mentais,meus exames de urina.
(…)
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos
(…)
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão. Comeu meu silencio, minha dor de cabeça,
meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto